O Rio de Janeiro demorou a reconhecer a potência de suas comunidades populares – e o Flamengo contribui para a rendição da cidade aos muitos encantos e virtudes que brotam por lá. “Festa na favela!!!”, celebra a plenos pulmões a arquibancada rubro-negra nos momentos de alegria, conectando o time a sua identidade mais popular. No bojo, ajuda a debelar o preconceito e a intolerância que ainda perseguem os quinhões mais vulneráveis da terra carioca.
Está longe de ser pouca coisa. Responsável pela força da mais popular grife esportiva do Brasil – não se enganem: aquele clube na confluência de Gávea, Leblon e Lagoa seria nada sem seus apaixonados e apaixonantes pretos e pobres –, a torcida canta a si mesma, sua origem e identidade, quando berra a favela. Em beleza e importância, dá de 7 a 1 em bacalhaus e porcos, gaviões e pós de arroz, galos e colorados.
E é jogo ganho de virada. Nasceu no preconceito dos rivais, que para espezinhar a massa, pedia silêncio nos gols adversários. Sem chance – a multidão em preto e vermelho dobra a aposta, grita mais alto ainda, sedimentando o encanto dos seus e o respeito dos oponentes.
Em verdade, parece negacionismo o clube mais popular do país estar fora de São Paulo. Na comparação das regiões metropolitanas, o lado de lá da Ponte Aérea tem quase 22 milhões de habitantes, contra menos de 13 milhões do Rio. Paciência: é aqui à beira-mar que viceja a maior paixão futebolística do Brasil – muito graças às favelas.
Um jogador em especial decifra a ligação entre clube, torcida e comunidades populares: Adriano. Nascido – orgulhosamente! – na Vila Cruzeiro, uma das 11 integrantes do Conjunto de Favelas da Penha, na Zona Norte carioca, o centroavante está na história rubro-negra como embaixador perfeito da torcida em campo. Negro, forte, artilheiro, torcedor desde o berço, materializou a conjugação de entrega e técnica que enfeitiça o povo das arquibancadas – a favela.
Pergunte a qualquer um de alma preto e vermelha, e a resposta sairá automática e intensa: Adriano, amor eterno. E olha que, na frieza dos números, ele nem fez tanto assim. Em duas passagens, jogou 94 vezes, marcou 46 gols e participou de 45 vitórias, 21 empates e 28 derrotas. Para comparar, Gabigol, atual inquilino vip dos corações rubro-negros, anotou impressionantes 83 em 115 partidas.
Pouco importa. O irrequieto e talentoso autor dos gols decisivos na conquista do bi da Libertadores arrebata a torcida com talento e atitude – mas Adriano, para usar aforismo contemporâneo, é outro patamar. Não tem a ver apenas com o (espetacular) futebol que jogava. Há muito mais nuances a se considerar.
A história dele com o clube inclui esforço dramático da avó, dona Wanda, que atravessava a cidade em ônibus e trens, escoltando o neto no vaivém entre a Vila Cruzeiro e a Gávea. Por um triz, ele não foi dispensado, mas chegou ao profissional. Durou pouco – aos 19 anos, se foi para a Internazionale de Milão, virar o Imperador, melhor centroavante do mundo, assombro de força, técnica e eficiência para marcar gols.
Rodou o mundo por clubes e pela seleção, até voltar em 2009, a tempo de conduzir o Flamengo do seu coração ao hexacampeonato brasileiro e cristalizar o amor dos torcedores. Assistir ao camisa 10 favelado marcar gols de todo jeito e comemorar com os seus no Maracanã encarnado transformou-se num dos estados da arte rubro-negra. Show visceral, explosivo, arrebatador.
Entre contusões e aborrecimentos, o Imperador abdicou da carreira aos prematuros 34 anos. Renunciou ao esporte profissional, exausto dos inúmeros protocolos a que precisava se submeter. “Sim, talvez eu tenha desistido de milhões. Mas quanto vale a sua paz de espírito? Quanto você pagaria para ter de volta a sua essência?”, questionou, em depoimento ao Players’ Tribune Brasil.
Saiu de cena e se foi para seu lugar preferido no mundo. “Adriano não sumiu nas favelas. Ele apenas voltou pra casa”, traduz, falando do lugar mágico, que, orgulhoso, fazia questão de mostrar aos colegas da seleção brasileira, em chegadas e partidas do Rio.
O Imperador foi ser feliz na Vila Cruzeiro, para desespero da elite racista do Brasil, que só enxerga violência e desencanto nas comunidades populares (sabem de nada, inocentes). Os súditos vão ignorar a marcha do tempo, esperarão para sempre sua volta – e vão homenagear o craque-fetiche a cada festa na favela. Até a eternidade.