Caetano Veloso (provavelmente) não estava entre os 138.107 viventes que se concentraram no Maracanã, na tarde amena do domingo 18 de abril de 1982, para o primeiro jogo da final do Campeonato Brasileiro daquele ano. Torcedor do Bahia, tinha quase nada a ver com o duelo entre os cariocas do Flamengo e os gaúchos do Grêmio. Se estivesse lá, constataria mais seu acerto na linda “Milagres do Povo”:
Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória
E paira para além da história
Bem no finzinho daquela jornada adolescente de outono, materializou-se um milagre para arregalar milhares de olhos, fazer cair a multidão de queixos, no estádio gigante e apinhado (atenção: não confundir com a mirrada indignidade padrão Fifa de hoje, que deveria se chamar Arena Sérgio Cabral). Momentos que tatuam cada detalhe na memória: a iluminação e os sons, os gestos e as expressões, as respirações e os batimentos cardíacos.
Bem aos 44 minutos, quando se esvaíam as esperanças mais remotas, saiu o maior de todos os gols do meu coração. Mas antes, o cenário – sofrido, torturante, permanentemente no limite do fracasso.
O então Flamengo campeão do mundo enfrentava o sempre guerreiro Grêmio em desvantagem – jogaria a segunda partida e, eventualmente, a terceira em Porto Alegre. Assim, precisava conseguir alguma frente no Maracanã, para sobreviver no sul, onde o adversário era quase invencível.
Mas o conjunto exuberante de Zico, Júnior, Leandro, Tita, Andrade e Adílio encontrou sua kriptonita, no tricolor dos Pampas. Com marcação xiita, dedicação de carmelita descalça e concentração budista, o Grêmio amarrou o Flamengo num jogo tenso, pegado, neurótico. Não parecia haver saída.
O inverso das apoteoses do ano, desde a primeira, diante do potente São Paulo de Serginho, Everton, Renato, Mário Sérgio, Oscar, Dario Pereyra, Marinho Chagas. Pela primeira vez desde a sova no Liverpool, na final do Mundial, os campeões do mundo reencontraram seu povo num ensolarado Dia de São Sebastião – e tomaram 2 x 0 no primeiro tempo, fora o baile. No segundo tempo, viraram espetacularmente, com dois golaços de Zico e um de Andrade.
(Nesse jogo, avaliamos que haveria pouco público – feriado, alta temporada de verão, solzão perfeito para a praia – e daria para seguir o ataque, algo impensável atualmente: assistir ao primeiro tempo de um lado e o segundo do outro. O Maracanã encheu com 85.236 pessoas e vimos tudo – os dois gols tricolores e os três rubro-negros – do outro lado do campo.)
Flamengo e São Paulo eram, junto com o Atlético-MG, os grandes times daquele momento. Praticamente, formaram a seleção brasileira inesquecível da Copa de 1982. Do rubro-negro, foram Zico, Júnior e Leandro – e só porque Tita renunciou à convocação por não querer ser ponta-direita, e Raul foi vítima da teimosia do técnico Telê Santana. No tempo em que poucos craques atuavam fora do país (hoje iriam todos embora com 16 anos), os jogos eram um deleite.
O Grêmio, campeão do ano anterior, fazia o orgulhoso papel de intruso na festa virtuosa. Alicerçava seu jogo na marcação obsessiva que, na decisão, aprisionou o toque de bola e a cadência rubro-negra. Para piorar, conseguiu seu gol – Tonho, aos 38 minutos do segundo tempo, em rebote de chute do excelente Paulo Isidoro, que Júnior não salvou por um átimo – “na única oportunidade do segundo tempo”, observou Luciano do Valle, na transmissão inesquecível (veja abaixo)
Se com o empate seria complicado em Porto Alegre, embarcar com a derrota parecia uma desnecessidade. Em pé, à esquerda da Tribuna de Honra, na altura da bandeira de escanteio, ao lado da Raça Rubro-Negra, não conseguia enxergar qualquer chance de título em quadro tão árido.
O domingo começara esperançoso, no almoço prematuro e apressado, em Niterói. Chegamos no Maracanã às 13h, para entrar e encontrar lugar na arquibancada que lotava cedo. Quando emergiram do vestiário, os craques rubro-negros foram até o nosso lado para a saudação especial, e só depois ao meio-campo. Cada jogador teve seu nome gritado, e agradeceu com os braços erguidos – protocolos cumpridos. Eram dias confiantes.
Mas o Grêmio conseguiu parar o Flamengo. E naquele resíduo de tempo após o gol de Tonho, fechou-se mais ainda. A vantagem impensada encaminhava o bicampeonato brasileiro. Para os cariocas, só um milagre melhoraria o cenário.
E ele veio.
Aos 44 minutos, Marinho bateu um lateral no desespero para Júnior, no lado esquerdo. O camisa 5 ganhou a dividida com Paulo Roberto e cruzou forte de pé esquerdo. Zico dominou para ganhar de Newmar e, de trivela, bater potente e certeiro no canto oposto de Leão. Técnica, velocidade, entrega, surpresa, tenacidade, precisão – tudo num golaço.
E foi ali, pertinho de mim. Pulei enlouquecido na arquibancada que balançava com a massa rubro-negra e procurei o parceiro de todo jogo para o abraço redentor. Arthur Vieira, colega de escola e paixão pelo Flamengo, estava sentado, olhos esbugalhados, as mãos para o céu, sussurrando em transe: “Zico, Zico, Zico…”
Talvez as testemunhas das aparições de santos em Aparecida, Fátima e outros lugares e os seguidores de Moisés quando o profeta abriu o mar tenham atravessado a mesma catatonia. Arthur (xará do craque) precisou ser sacudido pelo grito delirante da massa para juntar-se à orgástica alegria naquele pedaço cimentado do mundo.
Nenhum gol jamais será maior aquele – um milagre diante de nós.