‘Goleada sobre o Grêmio consolida supremacia do Flamengo e lembra os tempos do Brasileiro de 1982’

Aydano André Motta diz que 'o feitiço se quebrou e, contra os ex-algozes, virou passeio'

Foto: Alexandre Vidal/Flamengo

Meninas, meninos, em verdade vos digo: já foi (bem) mais sofrido ser Flamengo. Sou do tempo em que, temporada sim, temporada também, o suplício vestia preto, azul e branco, usava a lama e o frio para atingir as pernas (e outras partes) adversárias, até esmagar os frágeis oponentes vindos da praia. A kriptonita preto-vermelha esticava o erre, tomava chimarrão e batia doído – até ganhar na marra.

Pois desapareceu. Evaporou. Escafedeu-se. Página virada, amiguinhas. Letra vencida, amiguinhos.

Nas últimas duas vezes em que visitou o Grêmio, a temida Porto Alegre, o aguerrido futebol copeiro, pipipi popopó, o Flamengo enfiou inacreditáveis oito gols – e nesta quarta-feira, sofisticou o sacode com um jogador a menos. O sofrimento foi expulso de campo e uma nova narrativa se impôs na rivalidade, uma das mais intensas do futebol brazuca.
Historicamente, sempre foi do mesmo jeito. Os cariocas tentando seu jogo delicado, escravo da beleza de toques, dribles e lançamentos; os gaúchos se atirando em cada bola, impondo-se em faltas duras, invocando a macheza como intimidação. Cigarras do balneário contra formigas do pampa, um inferno.

Nos primórdios, êxitos lá perto do Uruguai eram bissextos e, por óbvio, inesquecíveis. Nenhum será como o de 25 de abril de 1982, a final da final do Campeonato Brasileiro, odisseia de três duelos renhidos entre os vencedores das duas edições anteriores – com o Flamengo ostentando, como cereja do bolo, o Mundial Interclubes, conquistado pouco mais de quatro meses antes.

O primeiro capítulo, você leu aqui uns diários atrás, foi o 1 a 1 no Maracanã, conseguido graças a um milagre de Zico nos estertores da partida. Noves fora o lance monumental do deus preto-vermelho, a angústia se apossou da torcida, pela necessidade da vitória fora de casa, contra aquele time incansável, irritante. O segundo jogo, no feriado 21 de abril, no Olímpico (antigo estádio gremista, ainda de pé, mas substituído pela moderna arena inaugurada no fim de 2012), terminou 0 x 0, lucro diante do sufoco construído pelos donos da casa.

Quatro dias depois, o sol enviesado do outono gaúcho iluminou a caneta de Zico no bom meia Vilson Taddei, na intermediária. O passe preciso encontrou Nunes na linha da área para o arremate de primeira, por baixo de Leão. Dez minutos de jogo, 1 x 0, e ficou assim – dentro do Olímpico, o melhor Flamengo de todos cristalizou seu posto de melhor time do país então cheio de craques.

(Com a camisa 7 dos derrotados em casa, estava certo ponta-direita de força e técnica, que faria sucesso de preto-vermelho mais adiante: Renato Portaluppi, rebatizado “Gaúcho” na terra carioca.)

Outras decisões vieram, a mais dura delas na Copa do Brasil de 1997. Em Porto Alegre, o Flamengo resistiu à nova pressão guerreira dos tricolores e, diante de quase 45 mil torcedores, segurou o 0 x 0 que encaminhava a conquista no Rio.

Dia 22 de maio, o Maracanã – não a Arena Sérgio Cabral, vocês já aprenderam – vestiu sua melhor roupa de festa, com quase 90 mil torcedores empurrando o time liderado por Romário. (Tecnicamente, não era equipe muito confiável, mas vamos em frente.) Logo aos seis minutos, o Grêmio fez 1 a 0, com João Antônio, e parecia que tudo daria errado. Mais na vontade do que na competência, o empate veio com Lúcio, aos 30 – mas, pelo critério do gol fora de casa, a vitória era obrigatória.

Onze minutos depois, Romário marcou o “mais Flamengo” de seus gols: ganhou disputa improvável de cabeça, a bola bateu no travessão e, na volta, atirou-se para marcar de peixinho. Apoteose pura. Daria certo – não fosse Carlos Miguel, aos 34 do segundo tempo, aproveitar falha da defesa e calar o Maracanã.

Ao longo dos anos, ir a Porto Alegre virou martírio, na mais terrível rivalidade nacional do Flamengo. Mas vingança, também no futebol, é prato que se come frio. E veio o mágico 2019.

Na obsessiva luta pelo bi da Libertadores, surgiram eles na semifinal. Haviam sido campeões dois anos antes, e ostentavam a fama de time copeiro. Ainda por cima, tinham no comando Renato Portaluppi, o ponta-direita de 1982, agora canonizado como estátua (literal, aliás). Nem as empolgantes atuações dos comandados de Jorge Jesus garantiram noites tranquilas às vésperas do duelo.

Quando a bola rolou na noite amena de 2 de outubro para o jogo de ida, a abissal disparidade técnica se impôs, em especial no primeiro tempo. O Flamengo marcou dois gols, anulados pelo VAR, e dominou o jogo, mas só conseguiu marcar à vera aos 24 do segundo tempo, com Bruno Henrique. O final feliz parecia encaminhado, até Pepê exumar a angústia, empatando no finalzinho.

Três semanas depois, a volta no Maracanã foi réveillon de Copacabana, Beija-Flor na Sapucaí, por-do-sol no Arpoador, baile do DJ Renan da Penha, tudo misturado. Numa das maiores atuações dos 126 anos de sua história, o Flamengo passou o carro nos rivais gaúchos: 5 x 0, uma enchente de futebol. Quase 70 mil pessoas encenaram um Carnaval no Maracanã, na festa que anteviu o bi continental.

Estava quebrado o feitiço. Naquele mesmo 2019, o Flamengo foi a Porto Alegre no último jogo antes da decisão contra o River Plate e, mesmo tirando o pé, venceu por 1 a 0. Procedimento de rotina. Agora em 2021, o placar agregado fora de casa marca 8 a 2 (pelo segundo turno do Brasileiro de 2020, o time de Rogério Ceni teve atuação brilhante, vencendo por 4 a 2). E nesta quarta-feira, Felipão, o marechal do 7 x 1 que agora dirige o Grêmio, voltou a merecer um bordão de 2014: virou passeio.

Está tudo diferente – e pode deixar assim.