Vista do lado oposto à tribuna de honra, a trajetória da bola, naquela falta do Zico, imitou a curva da Praia de Copacabana, até entrar, indefensável, no ângulo esquerdo do gol de um lívido Gilmar. Magia pura, arrebatamento absoluto, orgasmo futebolístico. Aos 33 minutos do primeiro tempo, o Flamengo fazia 2 a 0, encaminhava goleada inesquecível sobre o Palmeiras e começava a materializar o sonho do primeiro título nacional.
O time em campo e as 70.389 almas em preto-vermelho na plateia do Maracanã carregavam, naquele domingo de outono, 13 de abril de 1980, o desejo da vingança redentora, pela goleada ocorrida pouco mais de quatro meses antes. Era o início da rivalidade com o clube paulista, odisseia com mais sucessos do que tropeços.
O Flamengo chegou depois do Palmeiras ao olimpo dos supertimes. Nos anos 1970, eles viraram a Academia, com craques como Ademir da Guia, Luiz Pereira e Leivinha, ganharam campeonatos brasileiros, passearam na Libertadores – devaneios distantes para os rubro-negros, que festejavam, no máximo, campeonatos cariocas e vitórias sobre os rivais locais. Era hora de virar o jogo.
O dia chegou naquele domingo de sonho. O Flamengo começara a Taça de Ouro (nome do Brasileiro de 1980) vencendo Santos e Internacional; perdeu para o Botafogo (PB) no Maracanã – estava lá, entre as 24.496 testemunhas –; venceu Mixto (MT), Ferroviário (CE), Náutico (PE) e Itabaiana (SE); depois empatou com São Paulo (RS), Ponte Preta (SP) e Santa Cruz (PE). Os tropeços nem doeram, diante da espera pelo troco nos algozes do ano anterior.
Dia 9 de dezembro de 1979, Flamengo e Palmeiras se enfrentaram pela terceira fase do surrealista campeonato com 94 participantes. Os dois integravam o Grupo B, com os também paulistas Comercial e São Bento – quem vencesse o confronto no Maracanã, passaria à semifinal. Dirigidos por Claudio Coutinho (inventor do time que conquistaria o mundo), os cariocas amanheceram otimistas naquele domingo, para enfrentar os comandados de Telê Santana. Tanto que o Maracanã lotou, com 112.047 pagantes.
Deu tudo fragorosamente errado. Liderado por Jorge Mendonça (ponta-de-lança que barrara Zico na Copa de 1978), o time alviverde passou o carro e goleou por 4 x 1. Para completar o mico, Beijoca, rechonchudo centroavante baiano, foi expulso, ao desferir cotovelada grotesca no palmeirense Baroninho. Doeu.
Diferentemente do ditado, vingança no futebol é prato que se come em qualquer temperatura. Assim, o Flamengo escalou toda a constelação de craques para o acerto de contas – e deu merecido sacode. Zico (2), Tita (2), Toninho e Nunes marcaram nos acachapantes 6 x 2, atuação de almanaque, digna de uma equipe que seria, pouco mais de ano e meio depois, campeã do mundo. A apoteose se deu no quarto gol, de Toninho Baiano, lateral de muita força e cruzamentos precisos, aos 16 minutos do segundo tempo. Júnior rolou para Nunes na meia-lua, mas a bola atravessou toda a área, até encontrar o camisa 2 que, na corrida, encheu o pé e estufou a rede. (Lembrou demais o gol de Carlos Alberto Torres, também o quarto, na final da Copa de 1970.) Não tenham dúvida, crianças: o primeiro dos oito títulos brasileiros começou naquela goleada.
A história com o Palmeiras, a partir daí, oferece vários momentos memoráveis. Quase um par de décadas depois, os dois clubes se encontraram na final da Copa Mercosul (a atual Copa Sul-Americana), quando brilhou o atacante – e hoje comentarista – Caio Ribeiro. Nos 4 x 3 do Maracanã, ele saiu do banco para marcar dois gols. No Parque Antárctica, fez o primeiro, no empate de 3 x 3 que garantiu título surpreendente.
O Palmeiras ostentava craques de várias seleções, como Marcos, Arce, Cesar Sampaio, Alex e Asprilla, entre outros. Com muita entrega e determinação, os comandados de Carlinhos – Clemer, Juan, Athirson, Leandro Ávila e Rodrigo Mendes eram os principais nomes da equipe – conseguiram o resultado necessário, mesmo terminando com 10 (Leandro Machado foi expulso).
Nos últimos anos, Flamengo e Palmeiras tornaram-se inquilinos do topo no futebol sul-americano. Campeões das duas últimas Libertadores (cariocas em 2019; paulistas em 2020) e dos três últimos brasileiros (alviverdes em 2018; preto-vermelhos em 2019 e 2020), são dominantes no Brasil – agora com a concorrência do emergente Atlético-MG. O equilíbrio marcou a última decisão entre os dois, a final da Supercopa do Brasil, que terminou 2 x 2 com a bola rolando e o Flamengo venceu nos pênaltis, graças a desempenho brilhante do goleiro Diego Alves.
A última derrota, aliás, vai longe no passado: 2 x 0, no segundo turno do Brasileiro de 2017. Em 2018, dois empates de 1 x 1, e depois, só vitórias – inclusive no primeiro turno da atual competição nacional, 1 x 0, gol de Bruno Henrique, no Maracanã. ‘Bora manter aceso esse sinal verde (opa!), que está bom assim.