Para começar: não havia internet – sim, existiu um mundo sem ela. Funcionava assim: apurava-se num dia, escrevia-se à noite (primeiro, em máquina de escrever!!, depois em computador), imprimia-se de madrugada para chegar nas bancas e aos assinantes – os leitores – na manhã seguinte. Ufa, demora até para contar.
Jornalismo era desse jeito, amigos, no fim dos anos 1980 do século passado, quando, no meio de 1989, fui designado para a cobertura diária do Flamengo no saudoso Jornal do Brasil. Aos 24 anos, passei a acompanhar o cotidiano rubro-negro logo depois da Copa América, vencida pela seleção brasileira.
Eram tempos (muito) mais abertos e fraternos. Jogadores e técnicos interagiam sem filtro com os jornalistas, no ambiente artesanal da Gávea. Os treinos eram acompanhados da beira do campo, em tardes pacatas, vividas em conversas descompromissadas com treinadores, preparadores, funcionários, colegas. Coletivas eram solenes, convocadas apenas para trocas de técnico ou contratações importantes.
No primeiro semestre, o Flamengo de Zico, Leonardo, Zé Carlos, Jorginho, Aldair, Bebeto e Zinho perdera o Campeonato Estadual para o Botafogo, no famoso gol do ponta Maurício, encerrando longo jejum de títulos do alvinegro. Durante a competição de seleções, ficara sem Bebeto, o prodígio contratado ao Vitória como substituto de Zico, numa explosiva transferência para o Vasco. Durante a negociação do novo contrato do jovem atacante, o presidente Gilberto Cardoso Filho tomara um drible de Antonio Soares Calçada e Eurico Miranda, dupla ardilosa de cartolas, e o craque foi brilhar no grande rival.
Apesar da derrota no Estadual, Telê Santana foi mantido como técnico para o Brasileiro, a Copa do Brasil e a Supercopa dos Campeões da Libertadores, desafios do segundo semestre. Para compensar a saída de Bebeto, o Flamengo contratou um meia argentino, Claudio Borghi, que costumava dar passes de letra nos treinos. Mas jogava nada e é até difícil lembrar da passagem dele.
Testemunhávamos fatos, vitórias, derrotas e empates da beira do campo, cumprimentando os jogadores, ouvindo suas conversas e as instruções de Telê e as conspirações dos dirigentes. As entrevistas eram diárias e, nas vésperas de jogos, o treinador informava pessoalmente a escalação e o esquema tático, na rodinha dos repórteres.
Para entrevistar jogadores, era só abordar, explicar o tema e marcar diretamente com o entrevistado. Podia ser na casa do boleiro, no próprio clube ou num cenário que tivesse a ver com a reportagem. (Anos antes, ainda n’O Dia, entrevistei Gilmar Popoca, meia canhoto exímio batedor de faltas, enquanto ele treinava cobranças com a barreira móvel e uma camiseta pendurada no canto do travessão. Intimidade total.)
No meio do semestre, Telê e Valdir Espinosa (campeão estadual à frente do Botafogo) assumiu como técnico. Mas o ano não terminou feliz para o Flamengo, que teve de aturar o Vasco – de Bebeto – campeão brasileiro. Ainda aconteceu a despedida de Zico, numa inesquecível goleada de 5 a 0, com golaço dele de falta, sobre o Fluminense, em Juiz de Fora.
No início de 1990, outro momento divertido da cobertura de clube: a pré-temporada. Acompanhar os times em períodos concentrados numa cidade pequena, normalmente da região serrana do estado. Ficamos 15 dias na querida Nova Friburgo e não faltou notícia – o Flamengo disputou com o Botafogo o meia Carlos Alberto Dias (jogador muito do mais ou menos) e… perdeu.
Mas contratações não faltaram, ao menos em quantidade. Para o lugar de Zico – que se despediu numa festa inesquecível, na noite de 6 de fevereiro, com o Maracanã lotado –, a diretoria contratou Edu Marangon, meia correto revelado pela Portuguesa-SP. Ainda vieram os zagueiros André Cruz e Vítor Hugo, o lateral-direito Zanata, o atacante Bobô e o artilheiro Gaúcho, que faria muitos gols e seria ídolo. Subiram dos juniores os promissores Piá, Nélio, Fabinho, Djalminha e Paulo Nunes (sim, o hoje comentarista).
Mas foi tudo ofuscado por uma gigantesca barbeiragem da diretoria: a troca de Leonardo por Nelsinho, lateral do São Paulo. O niteroiense, formado na Gávea, era, aos 20 anos, uma evidente promessa de craque (que se consumou na sólida carreira na Europa e em títulos como o Mundial de Clubes e o tetra pela seleção) e a negociação revelou-se o imaginado por todos: um completo despropósito.
Aqui, a maior dificuldade no dia a dia de repórter: debelar a paixão de torcedor. Na hora de escrever as reportagens, todo autocontrole era necessário, para não carregar nos adjetivos diante de movimentos e decisões que tornariam o time pior. Às vezes – como nessa troca maluca –,o equilíbrio fundamental ao exercício do jornalismo acabava expulso de campo.
Com todas as trapalhadas, o ano terminou com título importante: a primeira Copa do Brasil, conquistada logo na segunda edição do torneio mata-mata. O Flamengo disputou a final com o Goiás e, no primeiro jogo, venceu por 1 a 0, gol do zagueiro Fernando. O JB me enviou para cobrir a decisão em Goiânia, na noite de 7 de novembro, e o 0 x 0, conseguido pela atuação espetacular do goleiro Zé Carlos, garantiu a conquista inédita e a vaga na Libertadores do ano seguinte.
A festa foi numa churrascaria local e todo mundo tomou todas. Júnior, Gaúcho, Renato, o técnico Jair Pereira e eu (entre outros) ficamos até quase o amanhecer conversando felizes. Inexistia a animosidade que hoje marca a relação entre jornalistas e boleiros. Durante muito tempo, Júnior e Renato foram amigos (o Maestro, excelente figura, é até hoje) e fontes de incontáveis reportagens e artigos.
Mas passou. Em janeiro de 1991, troquei de emprego, do JB para a revista IstoÉ, passando a abordar os assuntos do esporte de maneira bissexta. Mas o período vivido nas entranhas do clube mais popular do Brasil – e dono do meu coração – está tatuado na parede da memória.