Naquela derradeira semana de maio, 1980, o céu das tardes do outono se apresentou majestoso, a temperatura na amada Niterói manteve-se amena, a vida no Saco de São Francisco correu pacata, como acontece (até hoje) nos ninhos da elite. As boas notas no segundo ano do segundo grau (o atual Ensino Médio) do querido Colégio Nossa Senhora da Assunção anunciavam dias tranquilos até as férias de julho. Parecia tudo bem – #sóquenão.
A vida mergulhou na mais torturante angústia a partir da tarde de 25 de maio, aos 19 minutos da partida entre Flamengo x Coritiba, no Maracanã. Zico, o camisa 10, já cristalizado deus preto-vermelho, apontou a coxa direita e fez o gesto protocolar de substituição. As 88 mil pessoas no Maracanã (aquele, não a Arena Sérgio Cabral) silenciaram, paralisadas.
Para complicar a trama, um minuto depois, o time paraense fez 1 a 0 e, aos 29, marcou o segundo, pulverizando a vantagem alcançada no jogo de ida. Além de perder o craque, a final do sonhado título brasileiro passou a perigar. A torcida se dividia no sofrimento – o mico de uma eliminação dentro de casa ou a decisão sem o líder da camisa 10.
A qualidade do time incrível resolveu a primeira parte, com a virada espetacular por 4 a 3, gols de Nunes (2), Carlos Alberto – numa arrancada apoteótica – e Anselmo. Restava apenas um adversário até o título perseguido obsessivamente, mas ele era o outro grande time do país à época. O Atlético-MG eliminara o forte Internacional em contundentes 3 a 0, fora de casa no Beira-Rio. Era a equipe de Cerezo, Paulo Isidoro, Luisinho, Eder e, sobretudo, Reinaldo, dos maiores centroavantes da história do nosso futebol.
Zico se ausentou da primeira partida, na quarta-feira 28 de maio, no Mineirão. A duras penas, o Flamengo perdeu “apenas” por 1 a 0 (gol de Reinaldo, ora!) e dependia de vitória por qualquer placar, no Maracanã, para, enfim, conquistar o primeiro título nacional.
Estava longe de ser pouca coisa. Principal jogador brasileiro, Zico, à época, dividia com o francês Platini, o alemão Rummenigge e o emergente argentino Diego Maradona o status de melhor do mundo. O time de preto-vermelho à sua volta era recheado de talentos, mas seria façanha improvável superar o forte adversário no domingo.
A vida, então, virou angústia semelhante a que espreita Arrascaeta: joga ou não? E, se jogar, em que condição física? Como agora, as respostas estavam guardadas para a decisão. Mas até lá, tornou-se impossível pensar em outra coisa. (As semelhanças estão no tipo de lesão – muscular – e na importância da decisão. Não há comparação técnica possível entre o excelente uruguaio e o maior jogador de todos os tempos rubro-negros. Mas a interrogação que cerca o estado físico e a presença do camisa 14 evoca a sufocante lembrança.)
E afinal, o que aconteceu? Conjugando determinação e disciplina sobre-humanas, Zico entregou-se ao tratamento com o médico Giuseppe Taranto, mas sua escalação permaneceu indefinida até a véspera da decisão. Os jornais de domingo, 1º de junho, anunciaram a volta do camisa 10, que, empolgado, chamou a Nação para a vitória. “Chegou a hora da consagração. De provar que o Flamengo é mesmo o melhor time do Brasil. De acabar com essa história ridícula de que só jogamos bem em campeonato carioca. E que eu sou apenas craque de Maracanã. Chegou a hora da verdade. E não tenham dúvida: vai dar Flamengo na cabeça!”, garantiu, ao Globo.Em campo, o deus preto-vermelho mostrou que entrara no sacrifício. Mas era muito inacreditável – deu lançamento magistral para Nunes marcar o primeiro gol e fez o segundo, num lance de oportunismo, e foi determinante para a vitória por 3 a 2 que garantiu o título. Nos 90 minutos, mostrou-se diferente do habitual: enérgico, falante, alternava irritação e alegria, enfatizando, todo o tempo, a importância daquela conquista.
Zico entrou em campo, naquele domingo, porque era um “jogo do fim do mundo”. A partida mais decisiva, o momento-chave, a mãe de todas as decisões. Como a deste sábado, contra o Palmeiras, obstáculo derradeiro para a nova vitória continental. Por isso, seja qual for seu estado, Arrascaeta estará escalado. Talvez não tenha condições físicas para desenvolver todo o talento – mas pouco importa. O camisa 14 tem a história como inspiração. No fim, todo sacrifício terá valido a pena – porque o Flamengo será tricampeão da Libertadores.