Arthur Muhlenberg: ‘Nos Bailes da Vida’

'Pode parecer extremamente sacrílego, até mesmo blasfemo, mas a frieza dos números mostra que o Flamengo, para ganhar tudo e não perder de ninguém, não precisa de nós na arquibancada', diz o colunista

Foto: Reprodução de internet

O criptorubro-negro Nelson Rodrigues pontificou em 1955: quando o Flamengo dentro de campo não dá nada, o Manto Sagrado é içado, desfraldado, por invisíveis mãos, intimidando, fazendo tremer e acovardando adversários, juízes e bandeirinhas. É de notório conhecimento que o vate pernambucano não desfrutava de uma perfeita saúde ocular, necessitando do auxílio de seus acompanhantes, geralmente seus filhos, para entender com mais clareza o que acontecia dentro de campo.

Uma pequena e insignificante patologia que não o impediu de escrever algumas das maiores páginas da literatura brasileira baseadas justamente na tragédia humana que ele via dentro de campo. E que justifica a inexatidão factual no uso da bela imagem das “invisíveis mãos” içando e desfraldando a camisa do Flamengo, que é poesia natural em seu estado mais imaculado.

Ainda bem que era poesia, se fosse jornalismo Nelson teria atados aos pés, como uma bola de ferro, os *5W do lide e antes mesmo de começar a contar a história perceberia, talvez com a ajuda de Jofre ou Nelsinho, que quem içava e desfraldava o Manto era a torcida do Flamengo.

Mesmo antes de Nelson assinar a bela elipse, uma das lendas mais verídicas e comprovadas cientificamente na mitologia futeboleira nacional versava sobre o proverbial poder de decisão da torcida do Flamengo. Em incontáveis ocasiões no Maracanã, a Magnética, sem precisar entrar em campo, liderou no gogó viradas homéricas que resultaram em dezenas de títulos, voltas olímpicas, tumultos e princípios de rebelião generalizados em todo o país.

A extraordinária capacidade de se aglomerar numa arquibancada e, através de cantos, batuques e mandingas diversas, decidir e influir efetivamente no resultado dos jogos é uma vaidade pessoal que todo rubro-negro tem, menos o Angelim. Vaidade compartilhada até entre aqueles que jamais tiveram a oportunidade de estar num estádio vendo o Flamengo jogar. Mesmo porque a maioria absoluta dos 40 milhões de bem vestidos que professam a religião flamenga nunca viram o Flamengo pessoalmente e provavelmente jamais o farão. Que é exatamente a mesma relação dos religiosos com seus deuses.

Esse jeito remoto de ser Flamengo longe do campo sempre foi um mistério para os habitantes de um perímetro de mais ou menos 100 km em torno do Maracanã, feliz condição habitacional que permitia, até um passado recente, sem maiores façanhas logísticas, manter o hábito de acompanhar as glórias rubro-negras no estádio. Um mistério que vem se desfazendo, dia a dia, desde a final do esquecível Bicampeonato Carioca 19/20.

Desde então toda a comunidade filoflamenga tem se sujeitado a acompanhar as peripécias do Mais Querido pela TV, rádio ou internet. A pandemia da covid, que tanta desgraça tem causado à raça humana, foi o grande equalizador da torcida do Flamengo. Fazendo com que milhões enfim entendessem que não existe ninguém que seja mais rubro-negro do que outro rubro-negro. Sejam torcedores de estádio, de radinho ou de jornal do mês passado, por baixo das nossas segundas peles somos todos, assustadora e confortadoramente, iguais.

E seja qual for a cepa do rubro-negro, depois de tanto tempo impedido de estar nos estádios, não é perda de tempo ou problematização fazer uma reflexão e se perguntar se o Flamengo precisa realmente de nós do jeito que nós julgamos que precisa. Reparem que nos últimos 14 meses, sem a presença de nenhum de nós nos estádios, isto é, teoricamente desfalcado de seu principal jogador, o Flamengo foi capaz de vencer um Campeonato Carioca, um Brasileiro e uma Supercopa com pé nas costas.

O fato é que, sem ninguém cantar o hino, xingar o adversário, ofender a mãe do juiz, orientar o treinador numa substituição, fazer uma ola ou comemorar um gol, o Flamengo na esdruxula temporada 20/21 conseguiu ganhar mais do que costumava ganhar nos bons tempos da aglomeração humana incentivada. Quando a mulambada em êxtase podia se dependurar nos lustres e subir pelas paredes como lagartixas profissionais em qualquer peladinha da Taça Guanabara.

Pode parecer extremamente sacrílego, até mesmo blasfemo, mas a frieza dos números mostra que o Flamengo, para ganhar tudo e não perder de ninguém, não precisa de nós na arquibancada. É bastante aterrador, mas é, ao menos nesse mundo bizarro de distanciamento social, a mais pura realidade.

Mas o Flamengo, que não vive de brisa, precisa de nós por outros motivos, que de tão óbvios e mundanos nem precisam ser citados. Por isso, à torcida do Flamengo tem sido permitido correr espontaneamente aos riscos do contágio e voltar, em números ainda modestos, a frequentar o meio ambiente arquibancadiano.

Como os protocolos do Flamengo para o enfrentamento à peste estão em conflito com os protocolos da cidade do Rio de Janeiro, o clube tem buscado solucionar suas carências, principalmente a receita das bilheterias, mandando seus jogos em praças onde há menos rigidez no combate à pandemia.

A partida com o Defensa y Justicia nas oitavas de final da Libertadores, em Brasília, já contou com uma modestíssima parcela da torcida no estádio. Torcida chiquitita, pero cumplidora. Tanto que o Flamengo se classificou bem e voltará ao Mané Garrincha para enfrentar o Olimpia pelas quartas. Mais fortes são os poderes do povo.

Desde 1895, quando só tínhamos barcos, braços e a nossa marra, que o normal sempre foi que o povo fosse atrás do Flamengo, um êxodo constante que inspirou o lema Onde Estiver, Estarei. Em 2021, talvez pela primeira vez em 126 anos, é o Flamengo, que como todo artista, tem de ir aonde o povo está. Se for assim, assim será.

  • Os 5W https://pt.wikipedia.org/wiki/5WH