Já é uma espécie de tradição que no começo de cada temporada eu escreva um texto repetitivo e rabugento no qual que esculhambo o Carioca, chamo a atenção para o seu anacronismo e irrelevância e sempre destaco o absoluto desinteresse que a vetusta competição praiana consegue despertar em qualquer segmento do público nos dias de hoje.
Mas neste ano histórico, em que a Nação Rubro-Negra celebrará em 28 de março o centenário da conquista do Torneio Início de 1922, uma final emocionante com o Andarahy vencida por 1×0, gol de Dino, em que o Mais Querido alinhou Kuntz; Telefone (alcunha de José de Almeida Netto, que também era o técnico) e Pennaforte; Rodrigo, Sidney Pullen e Dino; Galvão Bueno, Candiota, Nonô, Segreto e Orlando, resolvi parar de reclamar.
Continuo achando o Carioca uma inutilidade, como uma mobília antiga, herança de família, que atravanca a passagem e da qual não posso me livrar por força de um inventário que jamais chega à uma conclusão. Mas me convenci que ficar reclamando não adianta porra nenhuma. Além do mais, pela primeira vez pudemos ouvir um treinador se referir ao Carioca, ao menos nessa fase café-com-leite, como uma mera etapa da pré-temporada de seis semanas, nada além disso. Logo depois de meter essa Paulo Sousa deu uma assoprada nos conservadores deixando claro que está ciente da transcendência dos clássicos rurais e que não os tratará sem a devida reverência que os nossos tira-teimas avoengos requerem.
É bom mesmo, porque se tem uma coisa para a qual o Flamengo não tem a menor vocação é perder pros três patetas vizinhos. O Flamengo às vezes até perde um clássico, é do esporte, mas sempre deixando muito bem demonstrado que quando o faz é contra a sua espontânea vontade e em flagrante desacordo com seu próprio estatuto. Antes de chegar ao clube o Paulo Sousa andou lendo umas literaturas e certamente entendeu que para a torcida do Flamengo ganhar os clássicos é mais importante que ganhar o próprio campeonato.
Depois de uma estreia sem sobressaltos e com placar folgado sobre o fraco Boavista, o Flamengo de Paulo Sousa ainda é uma incógnita. O desenho tático, ou mesmo a provável escalação do 11 titular ainda são apenas extrapolações feitas por experts a partir do pouco que foi até agora revelado. Mas dizer pouco é um disfemismo safado do escriba, na verdade, o que o Flamengo de Paulo Sousa, cheio de remendos, reservas e crias, apresentou em 90 minutos em termos de variações táticas, modelos de jogo e soluções inovadoras foi muito mais que Dome, Ceni e Renight apresentaram em um ano e meio.
Domingo, com mais titulares à disposição e diante de um time supostamente mais arrumadinho, esse Flamengo de Paulo Sousa terá que começar a sair do ovo. Para muitos torcedores o Flamengo está devendo em matéria de Fla-Flu, a sensação da torcida rubro-negra é que o Flamengo não vence os decadentes burgueses de Laranjópolis há anos e anos. Mas basta checar as estatísticas para ver que são apenas dois jogos apanhando desses inúteis. Ainda assim é inaceitável.
Já passou da hora do Flamengo fazer valer seus superiores princípios morais e aplicar aos eternos fugitivos da Série B uma lição de humildade, honestidade e respeito aos regulamentos. Tem que ganhar desses caras, Paulo Sousa! Mesmo porque nem dá pra comparar o elenco do Flamengo, com estrelas fulgurantes no apogeu de suas carreiras internacionais e de seus dotes atléticos, com o plantel outonal que o tricolor montou se aproveitando dos PDVs de clubes maiores. E olha que foram até boas contratações, jogadores com poucos títulos, mas algum renome, entretanto, a grande maioria deles já nem pode pegar friagem.
O que alguma boa alma já deve ter avisado ao Paulo Sousa é que todas as vantagens comparativas do elenco do Flamengo podem ser neutralizadas por uma única vantagem competitiva dos tricolores: para esses safados que não ganham nada há exatamente 10 anos (e contando) o Fla-Flu é o jogo mais importante da vida deles. Depois do Estadual de saltos ornamentais e do baile Vert, Blanc, Rouge, o Fla-Flu é a data mais nobre do calendário esportivo tricolor.
Enquanto o Flamengo, essencialmente puro e inocente, vai ao Nilton Santos para jogar a quarta rodada da Taça Guanabara preocupado apenas em oferecer um bom espetáculo ao público e orando para que nenhum colega de profissão se machuque, o time do Fluminense vai ao Engenho de Dentro obcecado, como se fosse o Exército Vermelho defendendo Stalingrado do avanço da Wermacht Mãe Rússia adentro. Compreensível, ganhar do Flamengo, nem que seja numa tacinha guanabarinha, é o máximo que os mortos de fome podem almejar na temporada.
Pro Flamengo voltar a vencer esse clássico é fundamental ter mais vontade de ganhar do que eles. Se liga nesse alô, Paulo Sousa. O Fla-Flu é um desafio primordialmente motivacional.
No jogo de Volta Redonda até os distraídos perceberam que Paulo Sousa, além de ser boa pinta e ter excelente dicção, é um cabra motivador. O show-baile de Vitinho no relvado do Estádio da Cidadania, não somente pelas três assistências, mas principalmente pela sua intensa movimentação e atividade na laje do começo ao fim do jogo, são indícios muito fortes de que o estrategista viseense domina a arte de acender o fogo sagrado no rabo dos jogadores. O Fla-Flu é a oportunidade ideal para Paulo Sousa mostrar pra Nação que também sabe como mantê-lo aceso.
O campeonato Carioca continua a não valer nada, ainda mais agora que nem na televisão essa droga passa. Mas esse Fla-Flu tá valendo alguma coisa, no mínimo tá valendo as 12 Brahma que apostei com o jornaleiro. Pra cima deles, Mengão. Aperta que eles peida.