Arthur Muhlenberg: ‘Flamengo ganhando hoje já estará virtualmente na semifinal’

'Olimpo habitado pelos semideuses Zico, Junior, Adílio e companhia está a apenas meia dúzia de jogos de distância'

Irmã de Gabigol usa o atacante como tema em uma campanha de marca de roupa
Foto: Alexandre Vidal/Flamengo

Pirâmides, Catedrais e Tricampeonatos

Daqui a umas poucas horas o Flamengo pisará no gramado do Mané Garrincha, em Brasília, para fazer a sua centésima quadragésima quarta partida pela Libertadores. Se conseguir a sua septuagésima sétima vitória na competição, desde 1980, o Mais Temido estará garantido nas quartas de final da Libertadores pela quinta vez.

E como o nosso adversário das quartas sairá do duelo Inter x Olympia não é cuspir para o alto afirmar que o Flamengo ganhando hoje já estará virtualmente na semifinal do bagulho. A altíssima possibilidade matemática de que aconteça exatamente o que foi relatado acima, só aumenta a importância do jogo de hoje e a responsabilidade de quem for envergar o Manto.

É bastante irregular, mas não ilegal, que a torcida do Flamengo coloque a conquista da Libertadores 2021 como uma obrigação. De primeira, tal afirmação soa meio irracional e soberba, porque Liberta é mata-mata e às vezes merdas acontecem. Só que a bem-vestida e ponderada torcida mulamba tem dezesseis Libertadores nas costas, dezessete se contar com essa, e sabe muito bem o que pode e o que não pode ser cobrado dessa rapaziada.

Com o time que o Flamengo tem, ganhar essa Libertadores desses times meia-boca que sobraram na pista e tão aí esburacando gramados, fazendo pirraça e envergonhando seus torcedores em todos os estádios do continente é obrigação, sim. Se não ganhar vai ficar até feio. Além de colocar sob suspeição tudo que acreditamos sobre supremacia, hegemonia e domínio de mercado. Na torcida do Flamengo ninguém quer ser rico, foda-se o balanço, só queremos ganhar tudo.

Nas duas vezes gloriosas em que fomos campeões da Libertadores aprendemos muito pouco, porque as vitórias inebriam os sentidos e escondem as falhas sob torrentes de champagne, cerveja e autocongratulação. Os nossos quatorze fracassos foram dolorosos, alguns muito injustos, mas nos ensinaram a lição mais valiosa de todas: na Liberta, se der mole o sapo engole. Ninguém, nem o Flamengo, ganha jogo de véspera.

Mesmo nas condições altamente favoráveis em que o Flamengo vai enfrentar o Defensa y Justicia no Mané Garrincha, com seu golzinho de vantagem e o regulamento debaixo do braço, temos plena consciência que o bagulho pode dar ruim. Principalmente se o Flamengo não for capaz de apresentar a mesma disposição e intensidade com que jogou contra o Bahia no domingo pelo Brasileiro.

Com apenas dois jogos e quatro ou cinco treinos, Renato ainda é uma esfinge. Tanto pro time quanto pra torcida. Os seus dois primeiros jogos foram tão diferentes entre si que é praticamente impossível cravar que o Flamengo vá jogar assim ou assado. O time horroroso e prega-presa do jogo de ida contra o Defensa tem pouquíssima semelhança com o esquadrão implacável que fagocitou o Bahia.

Não é exagero dizer que no momento existe um Renato de Schrödinger, que tanto pode sair da caixa cheio de disposição e botar o time pra frente como pode nem sair da caixa, porque só pode estar morto se armar um Flamengo retrancado. Nas próximas horas, antes do jogo começar, o Flamengo de Renight é uma superposição quântica.

O Flamengo morto de Florencio Varela e o Flamengo muito vivo de Salvador coexistem, emaranhados e envoltos pelas brumas da hipótese, dentro da cabeça de Renato. Ou, para ser mais nojento e usar o termo cunhado pelo próprio Schrödinger no decorrer do seu famoso experimento pra fazer churrasquinho com um contador Geiger, esses Flamengos potenciais estão num estado de Verschränkung (em português, entrelaçamento) no interior do crânio portulappiano.

Talvez um torcedor não rubro-negro diante de situação análoga usasse o senso comum e preferisse que o treinador do seu time encontrasse uma média ponderada entre os dois extremos. O risco que um torcedor do Flamengo pense da mesma forma é zero. O único Flamengo aceitável é o de domingo, jogando com marcação alta, sufocando o adversário no seu campo, pressionando a saída de bola e asfixiando o adversário até o seu colapso. Se o Flamengo não jogar assim dentro de casa contra o Bambala argentino vai jogar assim contra quem? Aquele Flamengo bizarro do jogo de ida, jogando aquele anti-futebol à campanha, é inadmissível.

Que o Renato no Flamengo possa abandonar definitivamente, e rápido, esses folclores regionais de fechar a casinha e jogar por uma bola do pastoreio. Na província talvez ainda funcione, mas aqui na Corte essas crendices são classificadas como arcaísmos táticos de eficácia duvidosa. Renight tem por dever fazer com que os nossos jogadores, que são melhores do que os da concorrência, tenham condições de exercer a sua superioridade técnica sem serem atrapalhados por defensivismos estranhos à sua natureza. O Flamengo é pra frente e Renight sabe muito bem disso.

Os jogadores do Flamengo não estão de bobeira, todos eles também estão acompanhando os jogos dos outros times e vendo que esse ano é nóis, e que depois vai ser nóis de novo, porque estamos muito na frente dos pangarés que nos perseguem à distância. Todos eles, além da meta coletiva do TRI da Liberta, estão em busca de seus recordes pessoais e não parecem a fim de desperdiçar a chance de escrever seus nomes na história do Flamengo.

Todo ser humano tem por instinto a necessidade de encontrar uma forma de deixar assinalada da maneira mais perene possível a sua passagem pela Terra. Assim se construíram as pirâmides e as catedrais. Todos os jogadores do Flamengo, e isso está fartamente documentado, são humanos. E nenhum deles é muito bom em engenharia civil. Não sobra muita coisa pra eles fazerem além de ganhar Libertadores.

O Olimpo habitado pelos semideuses Zico, Junior, Adílio e companhia está a apenas meia dúzia de jogos de distância. Qual é o mortal que deixaria passar a chance de se juntar às lendas que nem o tempo poderá apagar?