Como convém aos impérios, o destino do príncipe estava traçado desde sempre, à espera apenas da protocolar ação do tempo. O traje número 10 e o posto de rei um dia seriam seus, preservando a dinastia de arte e técnica que enfeitiçava as multidões e pavimentava as vitórias. Seus súditos, aliás, o amavam à espera de o futuro virar presente, no ritmo dos gols, assistências e outros lances que distinguem os nascidos com o futebol de sangue azul (na verdade, preto-vermelho). Mas Tita tinha pressa.
Cultuado por seu povo, deixou-se envenenar pela ambição irracional, que desprezava o futuro certo, por exigir o presente impossível. Ídolo num time perfeito, o craque atormentado renegou o próprio DNA futebolístico, deu as costas à sua casa e escolheu cair no mundo, em busca do posto que ali, naquele momento, não poderia ter. Escolhas cobram seu preço – e Tita, num movimento hediondo, vestiu o traje de rival e algoz.
Desde o início, o carioca Milton Queiroz da Paixão foi a encarnação mais que perfeita da alma rubro-negra. Conjugava talento e entrega em doses industriais na mais perfeita do ser Flamengo. Lutava pela bola com dedicação de torcedor e, ao conquistá-la, passava como maestro, articulava como pensador, finalizava como artilheiro. Acima dos outros predicados, cabeceava, muito além do que parecia conseguir a olho nu, em seus 1,74m. Tamanha versatilidade rendeu 136 gols e 247 vitórias pelo clube que o formou (e, sim, do seu coração).
Versátil como poucos em seu tempo, Tita vestia a 7 para desfilar jogo múltiplo pelo campo inteiro. No meio-campo e no ataque, atuava com desenvoltura em todas as posições. No melhor Flamengo de todos, posicionava-se preferencialmente pelos lados do ataque, superando laterais com dribles de ponta na direção da linha de fundo, para tecer cruzamentos precisos. Voltava para socorrer os laterais na marcação e participava do toque de bola incessante que marcava aquela equipe magistral.
Em muitas partidas, migrava para a ponta-de-lança – posição do antigo camisa 10, crianças, no tempo do futebol que era realmente um espetáculo – e substituía Zico sem grande prejuízo. Ali, travestia-se finalizador, além de alimentar o centroavante com passes iluminados. Luxuoso coringa, que materializou muitas vitórias daquela época inesquecível.
Uma delas, no ensolarado domingo 28 de outubro de 1979, foi especialmente memorável. Diante de 115.934 espectadores (ah, meninas e meninos, o Maracanã era demais), Flamengo e Vasco decidiram o Estadual – e o príncipe protagonizou a conquista do terceiro tricampeonato. Com a 10 sonhada (Zico não jogou), marcou um par de gols na vitória por 3 a 2. O do título, aliás, estará nos corações preto-vermelhos até a eternidade: o lateral Toninho cruzou da intermediária e Tita, numa cabeçada de almanaque desferida bem antes da marca do pênalti, venceu Leão, garantindo a conquista. Um espetáculo!
Tamanho (e tão peculiar) talento garantiu lugar na seleção, algo longe de ser simples na pororoca de craques do futebol brasileiro, à época – mas Tita pediu para sair. Dispensou-se de integrar a mais incrível reunião de craques pós-Copa de 1970, em nome da obsessão pelo inatingível lugar do rei, do 10, de Zico. Em busca do desejo irrealizável, ainda se foi do Flamengo, viver amores estrangeiros.
Na viagem sem volta, descobriu a vocação de ser amado por torcidas rivais. Jogou no Grêmio e no Internacional, sempre com brilho, mas importa pouco aqui. Em 1987, ano e meio após deixar o ninho, aceitou proposta para vestir a camisa… do Vasco!
Bateu doído nos torcedores do seu antigo clube, e, dores da rivalidade, há quem não o perdoe. São poucos. Até a consumação dos séculos, o príncipe atormentado terá lugar cativo na maioria dos corações rubro-negros.
- Publicado em versão resumida no livro “1981 – O primeiro ano do resto de nossas vidas”, organizado por Mauricio Neves de Jesus, editora Livros de Futebol.