Aydano André Motta: ‘Em 1981, isso tudo aqui era mato – Parte II’

Esqueçam as arenas de iluminação generosa, campos aprumados, vestiários profissionais, VAR, toda a estrutura bem cuidada do século 21. Meninas e meninos, Libertadores raiz era pedreira!

Foto: Divulgação/Site do Flamengo

Esqueçam as arenas de iluminação generosa, campos aprumados, vestiários profissionais, VAR, toda a estrutura bem cuidada do século 21. Meninas e meninos, Libertadores raiz era pedreira! Literalmente: para vencer o torneio continental pela primeira vez, o Flamengo precisou superar até adversário que acrescentou pedras ao equipamento do jogo.

Como um vilão de almanaque, o zagueiro chileno Mário Soto inovou para bater nos adversários. Com uma pedra na mão, arrancou sangue de Adílio e Lico, atingidos no supercílio. Como se diria no futuro, #outropatamar, mesmo na selvageria da Libertadores. Mas a vingança veio ligeira – na bola e na briga.

No sempre enlouquecido calendário sul-americano, a competição parou em agosto de 1981, após o inconcluso duelo com o Atlético-MG, no Serra Dourada, e só voltou em outubro. A fase semifinal seria disputada em dois grupos com três times cada – os primeiros colocados fariam a final. Os adversários do Flamengo foram o colombiano Deportivo Cali (que eliminou os argentinos River Plate e Rosário Central no Grupo 1 da fase inicial) e o boliviano Jorge Wilstermann.

Para começar, os brasileiros foram à Colômbia e, diante de 50 mil empolgados torcedores, venceram por 1 a 0, gol de Nunes, logo aos 10 minutos. Na segunda rodada, outro passo seguro na caminhada com novo sucesso fora de casa: 2 a 1 sobre o Jorge Wilstermann, gols de Baroninho e Adílio.

Vocês vão achar que o colunista está gagá, mas naquele tempo, a Libertadores rivalizava em importância com o Campeonato Estadual. Assim, somente 28.847 torcedores testemunharam a goleada de 3 x 0 (Zico, 2, e Chiquinho) sobre os colombianos, no primeiro jogo da volta, na sexta 23 de outubro, no Maracanã. E impensáveis 7.520 pessoas foram à casa preto-vermelha testemunhar os 4 x 1 (Nunes, Adílio, Anselmo e Chiquinho), contra os bolivianos, que garantiu a classificação para inédita final. Com 100% de aproveitamento, o Flamengo foi descoberto pelo continente, e chegava como favorito à decisão.

No outro grupo, o surpreendente Cobreloa, do Chile, bateu os uruguaios Peñarol e Nacional (campeão do ano anterior, que entrava na disputa a partir da segunda fase), construindo a final de novatos. As tretas começaram antes de a bola rolar. Os chilenos queriam mandar seu jogo no inóspito estádio de Calama, cidade do clube e capital da exploração de cobre nas franjas do deserto de Atacama, norte do país. Alçapão por alçapão, o Flamengo ameaçou jogar na Gávea. Prevaleceu a sensatez e as partidas marcadas para os principais campos nos dois países: o Maracanã, na sexta 13 de novembro, e o Estádio Nacional de Santiago, uma semana depois. Em caso de vitórias pela mesma diferença de gols, um jogo-desempate seria disputado no neutro Centenário, em Montevidéu.

A primeira parte da decisão teve público imenso para os padrões de hoje – 93.985 espectadores – mas que não lotou o Maracanã gigantesco, demolido para dar lugar à infame arena Sérgio Cabral. De qualquer maneira, ficou evidente a disparidade técnica. O Flamengo jogou muito melhor, mas a torcida terminou com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, diante do placar mirrado: 2 x 1, gols de Zico ainda no primeiro tempo, e de Victor Merello, no segundo.

Em clima extremamente beligerante, Santiago ofereceu o cardápio completo da baixaria futebolística sul-americana, no jogo de volta. Foguetório na madrugada anterior, ameaças da polícia, xingamentos e tentativas de agressão dos torcedores, vestiário precário dos visitantes, objetos variados atirados no gramado… Ainda havia o clima fúnebre do Estádio Nacional, endereço de torturas e assassinatos de presos políticos na sangrenta ditadura do general Augusto Pinochet, que duraria até 1990.

Quando a bola rolou, quase não houve futebol, sufocado por toda a pancadaria possível dos donos da casa. Logo no início, a camisa branca, do segundo uniforme, de Adílio, ficou vermelha do sangue que escorreu do supercílio do craque, cortado pela pedra de Mario Soto. O Flamengo também entrou no clima, esquecendo a técnica e devolvendo as pancadas. Nunes, Tita e Mozer escaparam do cartão vermelho pela leniência do juiz uruguaio Ramón Barreto.

Aos 32 minutos do segundo tempo, Merello marcou, de falta, o gol da vitória chilena e não houve mais futebol. A partida terminou num clima de total hostilidade – e o desfecho adiado para a segunda-feira seguinte, 23 de novembro, no Uruguai.

Menos da metade do Centenário – 30 mil pessoas – foi ocupada para, enfim, o futebol prevalecer. E não só ele: “Não pensávamos só no título. Queríamos vingança. Não sabíamos o que era perder no grito, na intimidação. Queríamos ganhar dando um chocolate neles, bem amargo e derretido”, recorda Júnior ao Blog do Mauro Beting: “Eles sabiam que só podiam equilibrar as forças levando para aquele clima. Pisaram em mim quando estava caído, mas também soltei meus cotovelos em outros lances. O fundamental naquele jogo foi que chegamos ao vestiário e dissemos: ‘Aqui acabou. Se formos jogar bola em outro lugar a gente leva’.

E assim aconteceu. Sem Lico, o técnico Paulo Cesar Carpegiani deslocou Leandro para o meio-campo e escalou Nei Dias pela direita. Figueiredo também desfalcou a equipe, substituído por Marinho. O Flamengo se impôs, marcando com Zico, logo aos 18 minutos, diante de um Cobreloa violento como sempre, mas impotente ante à perícia preto-vermelha. Aos 39 do segundo tempo, o goleiro Wirth pôs a mão na bola fora da área, pela meia-esquerda (não era lance de expulsão àquela época), falta perfeita para Zico. O deus rubro-negro seguiu o genial protocolo da vida toda, marcando o segundo gol no estatelado arqueiro adversário.

O camisa 10 saiu pulando pelo gramado, certo de que o sonho se realizara. Pela Rádio Globo, o inesquecível locutor Jorge Cury gritava “Zico, Zicão, Zicaço!!”, reverência ao maior ídolo do futebol brasileiro pós-Pelé.

Acabou? Não, não. Faltava a vingança.

A três minutos do fim, Anselmo substituiu Nunes com uma única missão: abater Mario Soto, o sociopata zagueiro da pedra (e de toda a sorte de pancadas nos craques rubro-negros). Centroavante forte e veloz, nascido em Nova Friburgo (RJ) e revelado nas divisões de base da Gávea, ele, 23 anos, encostou no defensor como se fosse fazer uma jogada de pivô – e virou o punho direito de surpresa, num direto que levou o adversário ao chão, instantaneamente.

Instalou-se um conflito no gramado, com jogadores do Cobreloa no encalço de Anselmo, que se refugiou no vestiário. O juiz encerrou a partida minutos depois, com os ânimos serenados, e Zico recebeu a Taça Libertadores no meio do gramado, para a volta olímpica emocionada dos heróis em preto-vermelho. O Flamengo era o terceiro time brasileiro (depois de Santos e Cruzeiro) e o primeiro carioca a ganhar o troféu continental. O alvo da paixão da maior torcida do país tornava-se, assim, um clube internacional.

E a conquista do mundo chegaria logo.