Quando o esquadrão de Zico, Júnior, Leandro, Tita, Andrade, Adílio e Nunes conquistou a América, isso tudo aqui era mato. O pau quebrava impune, os juízes praticavam barbaridades de cara limpa, estádios, vestiários e gramados eram uma várzea, as viagens ensejavam perigo permanente, filho chorava e mãe não ouvia.
Libertadores raiz, crianças. Vocês não fazem ideia!
A competição continental de clubes foi, durante ao menos um par de décadas, protetorado de uruguaios e argentinos – até hoje, a terra de Messi e Maradona tem mais conquistas, 25, contra 20 do Brasil. Muitos times ganharam na base da baixaria futebolística, que acabou tatuada como marca do torneio.
O Flamengo se credenciou pela primeira vez ao conquistar o Brasileiro de 1980, à época denominado Taça de Ouro (aliás, encenou com o Atlético-MG a maior final de todos os campeonatos nacionais, tema para outra coluna). A Libertadores, então, tinha menos importância do que as vitórias domésticas. Brasileiros a disputavam para, basicamente, apanhar. As exceções foram o Santos de Pelé, bicampeão no tempo em que Dondon jogava no Andaraí; e o Cruzeiro de Raul, Nelinho, Joãozinho, Palhinha, cinco anos antes da aventura preto-vermelha.
Havia várias explicações para os passeios de nossos vizinhos. O continente estava mergulhado nas trevas de ditaduras superviolentas, que usavam as vitórias no futebol como ferramenta de propaganda – então, ganhar a qualquer custo era preciso. Além disso, bater o (e no) Brasil, ainda com prestígio de tricampeão do mundo, tinha status de obsessão entre os rivais sul-americanos, que não aceitavam perder. Por fim (com o devido desconto da paranoia), circulava a suspeita do conluio de árbitros e jogadores, pelo idioma – no blábláblá em espanhol, brasileiros sofriam em português.
O Flamengo desembarcou nessa selva, para tentar materializar o sonho do título internacional e a passagem até Tóquio, em busca do Mundial de Clubes. Até a fórmula de disputa era mais cruel – 20 clubes disputavam a fase inicial, divididos em cinco grupos de quatro. O campeão do ano anterior (Nacional, do Uruguai) entrava na fase semifinal, jogada em dois grupos de três. Em todas as etapas, só o primeiro colocado se classificava.
Nada a ver com a farra de hoje – somente o campeão e o vice de cada país se credenciavam à disputa continental, e ficavam no mesmo grupo. Em 1981, Flamengo e Atlético-MG cruzaram com os paraguaios Cerro Porteño e Olimpia (olha ele aí). A qualidade dos brasileiros – melhores times do Brasil à época, uma constelação de craques da seleção – se impôs facilmente e o grupo virou um duelo doméstico.
Zico e seus parceiros estrearam justamente contra o Galo, no Mineirão, e arrancaram empate em 2 a 2, gols de Nunes e do zagueiro Marinho. O esplendor do melhor time de todos apareceu pela primeira vez dia 14 de julho, na goleada sobre o Cerro Porteño por 5 a 2 – Zico (2), Nunes (2) e Baroninho. (Numa prova da falta de prestígio da competição, a vitória se deu diante de mirrados 26 mil espectadores no Maracanã.)
Em seguida, a equipe tropeçou diante do Olimpia (1 a 1, gol de Adílio), e ficou em mais um empate de 2 a 2 (Nunes e Tita) com o Atlético-MG. Nos jogos fora do país, outra vitória sobre o Cerro – 4 a 2, três gols de Zico e um de Baroninho – e nova igualdade com o Olimpia, 0 a 0.
O Flamengo terminou seu grupo em primeiro, mas, apesar de ter melhor saldo de gols do que o Galo (14 a 8), o regulamento da Libertadores – inesgotável coleção de bizarrices – previa um jogo extra em caso de igualdade no número de pontos. Assim, a rivalidade entre cariocas e mineiros chegou a seu clímax na noite de 21 de agosto, no gramado decorado com quadrados e círculos do Estádio Serra Dourada, em Goiânia (coisas dos anos 1980, não tentem entender).
Na partida lotada de craques, o protagonista acabou sendo o juiz, José Roberto Wright. Com fama de implacável, o performático árbitro decidiu ser radical na disciplina, e estragou tudo. O duelo nervoso por natureza virou explosivo por um surrealista conjunto de trapalhadas do senhor do apito. As faltas de parte a parte se sucediam em espiral até que aos 32 minutos, Reinaldo – um dos melhores centroavantes brasileiros de todos os tempos, cracaço de bola – deu uma tesoura por trás em Zico e foi expulso.
Não prestou. Farejando o descontrole do árbitro, os jogadores tentaram ganhar no grito. Logo em seguida, Eder, Palhinha e Chicão, todos do Galo, também receberam o cartão vermelho. Com apenas sete em campo, os mineiros decidiram que não haveria mais futebol. O goleiro João Leite caiu, alegando uma contusão e, diante de 65 mil torcedores, a decisão encontrou seu prematuro fim, por número insuficiente de um dos times.
Duas semanas depois, em 4 de setembro, a Confederação Sul-Americana declarou o então campeão brasileiro vencedor, por não ter causado qualquer incidente. Para o Atlético-MG, restou a eternidade de rancor e reclamações. O Flamengo seguiu em frente, na direção do título inédito.
História que vai continuar, numa próxima coluna.