Arthur Muhlenberg: ‘Outro Flamengo nascendo, muito diferente do time de Jesus’

'Foi com esse Flamengo sem Gerson que ficou o compromisso de conquistar o Eneacampeonato, o TETRA da Copa do Brasil, o TRI da Libertadores e, naturalmente, o BI Mundial', diz o colunista

Arthur Muhlenberg: 'Outro Flamengo nascendo, muito diferente do time de Jesus'
Foto: Alexandre Vidal

Depois de 704 dias, 107 jogos, oito títulos e incontáveis vapos, Gérson fez sua última partida pelo Flamengo. Gérson e o Fortaleza sabiam que o jogo era o grande momento para ambos no Campeonato Brasileiro de 2021. Sabiam também que daqui em diante vão ter que aprender a se virar longe do brilho, da luz e do calor que o Flamengo emana.

Ainda que seja atualmente um dos mais fortes candidatos ao vice-campeonato brasileiro, pro futuro do Fortaleza estamos pouco nos lixando, nossa preocupação é o futuro do Gerson. O Coringa jogou muita bola no Flamengo, deixa um legado impressionante e, sem forçar a barra, conquistou um lugar na galeria dos grandes camisas 8 da Gávea. Um bonde nervoso puxado por Zizinho e formado por Dr. Rúbis, Moacyr, Geraldo Assoviador e o imortal Adílio da Cross. Como se pode ver, não é qualquer um que tem conteúdo pra formar nesse bonde. O Gerson tem.

Além de tudo que fez dentro de campo, Gerson também alcançou outro patamar em termos de representatividade. E deixa um legado importante na luta contra o racismo. Quando o problema apareceu na sua frente ele não se esquivou, não deixou pra lá, não teve essa de bola pra frente. Se posicionou sem se vitimizar, denunciou com todas as letras, botando a cara, dando os nomes e mantendo a palavra. Infelizmente, a parada não avançou, mas Gérson não pipocou.

Toda a Nação tá torcendo pelo sucesso de Gérson, que ele se consagre, ganhe muito dinheiro, muitas Bolas de Ouro e ainda mais moral pra lutar pelo que acredita. O Gérson foi pra França, mas o problema que ele apontou continua aqui, esperando por uma solução, que não é trabalho do Gerson ou de outro herói solitário. É uma missão de todos, nacional e universal. Já passou da hora de resolver isso.

Quem também continua é o Flamengo, agora definitivamente sem o Gerson. É o quarto jogador daquele time histórico de 2019 que deixa o clube. Um caminho natural para os grandes craques, e também pros grandes times. Que estão sempre condenados a acabar um dia. E os grandes times não acabam de uma hora pra outra, não é como se do nada caísse um meteoro e extinguisse a família Silva Sauro. Os times vão se desfazendo aos poucos, vítimas do próprio sucesso. Torcedor sofre, mas acaba aprendendo a lidar com isso.

Foi com esse Flamengo sem Gerson que ficou o compromisso de conquistar o Eneacampeonato, o TETRA da Copa do Brasil, o TRI da Libertadores e, naturalmente, o BI Mundial. É pra esse Flamengo que vamos torcer. Esse Flamengo, com a assinatura tática do Rogério Ceni, evidentemente ainda está em construção. O novo Flamengo nasceu, nem todo mundo tava prestando atenção, por isso é sempre bom repetir.

Já é muito diferente do Flamengo de Jesus, mas ainda não adquiriu uma cara, um estilo próprio e distintivo. Isso vai acontecer quando as peças se encaixarem. Os titulares que voltam das seleções, o jovem João Gomes, o recuperado Thiago Maia e quem mais pintar numa das loucas janelas de negociação que se abrirão é que vão dar as feições definitivas desse Flamengo que pretende ser campeão de tudo.

No cenário nacional tá muito difícil pro rubro-negro médio até mesmo simular alguma preocupação ou humildade diante da explicita superioridade rubro-negra. Para aqueles mais dedicados, que se prestam a ver os jogos dos outros times, a incontornável obrigatoriedade do Flamengo ganhar esse Brasileiro com, no mínimo, 8 rodadas de antecedência é assustadora. Essa consciência da própria superioridade é um inimigo formidável, muito mais difícil de ser vencido do que qualquer adversário que vier a enfrentar ao longo do ano.

Claro que ao longo do ano é bem possível que o Flamengo deixe de ganhar um jogo ou outro. É bem provável até que o Flamengo perca um jogo. Nos mata-mata esses acidentes acontecem. Mas são muito raros quando a casa tá arrumada e ninguém pisa na bola. A casa parece estar arrumada e com dinheiro de sobra. O principal é que os nossos jogadores tão voando. Só não pode deixar eles acreditarem muito nisso.

Na ausência da torcida, a função número 1 de Rogério Ceni é muito parecida com a do escravo do Júlio César. Quando César voltava à Roma depois de uma conquista o Senado fazia um desfile triunfal pra ele. O escravo de César ia na biga junto com ele. Enquanto as trombetas soavam, o populus romano urrava e cobria César de aplausos, confetes e serpentinas, o escravo ficava agachado na biga, falando baixinho pro patrão: – Lembra-te que és mortal!