Arthur Muhlenberg: ‘Futebol do Flamengo de Paulo Sousa é muito pobre’

'Único caminho pra voltar a ser o mais temido da América é esquecer Jesus e jogar bola. A bola é o caminho, a verdade e a vida', diz colunista

São Paulo vai bem nas fragilidades atuais do Flamengo, opina jornalista
Foto: Marcelo Cortes/Flamengo

O Modelo Kübler-Ross

Uma das maiores irresponsabilidades que existem no futebol é projetar cenários futuros tomando por base uma única partida, mas que se dane a segurança. Até os puros de alma puderam perceber que se continuar jogando o futebol vagabundo que apresentou em Lima o Flamengo não vai longe na competição continental.

Pelo menos arrumou-se uma vitória. Demorou. Já tinham se passado 16 dias desde a última vez que o Flamengo fora fiel aos mandamentos do seu próprio hino, ainda na semi do imprestável Carioca. O 2×0 sobre o Sporting Cristal na estreia na Libertadores foi uma vitória menor, sem brilho e de pouco valor, mas com muitos significados.

O que imediatamente saltou aos olhos de todos é que o Flamengo se tornou um time bem sem vergonha. Desses que conseguem encontrar alguma dificuldade pra enfrentar o 8º colocado no exigente Campeonato Peruano. Podemos especular que se não fosse a juventude e a disposição de Matheuzinho, João Gomes, Lázaro e Hugo o Flamengo não conseguiria sequer empatar com os pobres peruanos. Não perder o jogo foi uma façanha.

Porque o Flamengo jogou de luto, e não estamos falando dos inortodoxos calções pretos. O clima pesado que se instalou no clube após a perda do Tetra Carioca catalisou em grande parte do elenco um conjunto de reações próprias daqueles que sofrem uma grande perda. Após meses e meses de evidente morte cerebral, no sábado, 2 de Abril de 2022, sobreveio a falência múltipla e definitiva dos órgãos e, finalmente, o atestado de óbito do Flamengo de 2019 foi oficialmente expedido. Demorou, pode mandar gravar a data na lápide.
É dessa inescapável e incômoda consciência de que se acabó la tequila que veio o futebol fúnebre com que o Flamengo brindou as arquibancadas vazias do Nacional de Lima. Um futebol que se enquadra perfeitamente no modelo proposto pela psicóloga suíça Elizabeth Kübler-Ross para os cinco estágios pelos quais os indivíduos (e hoje sabemos, também as instituições) passam ao lidar com a perda, o luto e a tragédia.

Publicado no livro On Death and Dying, de 1969 e popularizado globalmente em One Fish, Two Fish, Blowfish, Blue Fish, 11º episódio da 2ª temporada de Os Simpsons, de 1991, o Modelo Kübler-Ross enumera os seguintes estágios: Negação, Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação. A torcida do Flamengo, sempre um passo adiante, tinha percebido que o time de 2019 acabara em 2020, já tinha passado por todos os estágios. Agora parece que o time, depois de meses na depressão, finalmente atingiu o 5º estágio.

Aquele time morreu de morte morrida, ninguém precisou matar. A fila anda, enquanto o esporte evolui os corpos envelhecem. Assim como as ideias. A única coisa que permanece inalterada é a vontade de ganhar. Uma vontade que para ser satisfeita, além de sacrifícios físicos e mentais, exige coragem para se arriscar, se expor. O futebol burocrático da maioria das estrelas do elenco tem mais a ver com o instinto natural de proteger posições conquistadas do que com a decadência da competitividade. Essa está ligada diretamente à falta de um projeto de futebol no clube.

Quando houver um e estiver plenamente implantado os jogadores vão entender com mais clareza os seus papeis na estrutura do futebol do Flamengo. E assim saberão, antes até que alguém precise lhes dizer, a hora de parar de encher o saco e começar a trabalhar pelo grupo. A molecada, que Paulo Sousa tem ao menos colocado pra jogo, é que vai herdar tudo, não adianta a panela da velha guarda se apegar ao que é essencialmente transitório.

Mas também não adianta nada os cria salvarem o couro do Paulo Sousa se ele mesmo não tiver mais carinho pela pele que habita. Independente de boicotes, sabotagens e sacanagens dos perninhas, uma das funções que se exige do treinador é que seja capaz de colocar os jogadores pra jogar, mesmo que não gostem dele. Esse é um dos talentos indispensáveis a um gestor de grupos, principalmente os estrelados.

O futebol do Flamengo de Paulo Sousa é muito pobre. Atacando ou defendendo não há nenhum brilho ou autoralidade, não há o mínimo indício de que o que está sendo feito em campo tenha sido previamente treinado. Três meses podem não ser muito tempo, mas o normal é que a esta altura do trabalho já se percebesse alguma evolução na forma de jogar, mas o Flamengo continua jogando peladas.

Foi jogando pelada que o Flamengo perdeu o Carioca, jogando pelada conseguiu sua primeira vitória na Libertadores e jogando pelada vai estrear no Brasileiro. Com uma formidável e explicita crise de relacionamento no elenco, medalhões fazendo biquinho, um treinador contestado e uma diretoria omissa.

Diretoria que no meio desse vendaval, com o presidente deixando a chapa fervente aos cuidados de subalternos pra dar um rolé na Espanha, tomou a inteligentíssima, moderna e profissional decisão de promover uma conversa entre o elenco e torcidas organizadas no Ninho do Urubu. Organizadas que volta e meia são proibidas de frequentar até os estádios. Um exemplo de gestão, terceirizaram até o constrangimento.

A torcida do Flamengo, a parte dela que não se dedica a encurralar o time em aeroportos, sabe que pra ser feliz com o Flamengo é fundamental bem administrar as expectativas. Enfrentar a temporada de 2022 olhando para a fotografia de 2019 não iria fazer bem. Melhor encarar o espelho com a luz acesa e ir pra pista sabendo que o jogo virou, que o Flamengo não vai ganhar ninguém só na sugesta. A batalha não é espiritual. O único caminho pra voltar a ser o mais temido da América é esquecer Jesus e jogar bola. A bola é o caminho, a verdade e a vida.