Arthur Muhlenberg : ‘Flamengo é o Senhor da América’

Façanha foi gigantesca, chegar à mais uma final da Libertadores invicto, com uma campanha perfeita na fase de mata-mata e um ataque de mais de 30 gols em 12 jogos

Foto: Marcelo Cortes/Flamengo

Uma semana antes do jogo em Guayaquil perguntava-se onde estava aquele espírito altivo e indomável característico do rubro-negro padrão. A torcida se dividiu, uma parte entendeu a vitória por 2×0, com baixíssimo nível de sofrimento, como um forte indício de controle total da situação, enquanto outra parte viu no placar moderado uma incapacidade do Flamengo em impor seu jogo. O resultado desta divisão foi um decréscimo na confiança média da Nação.

O ser humano tem mistérios insondáveis, por incrível que pareça, antes de Barcelona x Flamengo começar havia um número considerável de rubro-negros que ainda não tinham certeza da classificação do Flamengo para a grande final em Montevideo. O fato do Barcelona genérico ser uma carne assada notória, que se comprovou cientificamente em diversas ocasiões durante a competição, não foi suficiente para que a torcida desse vazão livremente à sua marra natural. Nunca se havia notado a existência de tantos rubro-negros ponderados, contritos e modestos como durante essa semana atípica.

Essa contrição durou até os 17 minutos do primeiro tempo da semifinal. Quando o monstro Everton Ribeiro meteu uma bola pós-graduada pra Bruno Henrique, indomável em jogo grande, guardar a criança no fundo das redes do goleiro guayasense ela acabou, esperamos que para sempre. A partir daquele momento, reestabeleceu-se a normalidade na nação onde o Sol jamais se põe.

Todo mundo sabia que as chances do Barcelona correr atrás do resultado eram inexistentes, era só deixar o tempo correr e esperar o fim do jogo pra comemorar. Ou, como fizeram os mais experientes, começar a comemorar naquele exato momento. Aquele espírito que estava fazendo falta voltou com tudo. O rubro-negro voltou a ser fanfarrão. Justificadamente.

A façanha foi gigantesca, chegar à mais uma final da Libertadores invicto, com uma campanha perfeita na fase de mata-mata e um ataque de mais de 30 gols em 12 jogos. Era preciso exaltar esse momento em que o Flamengo, finalmente, entra em definitivo para o rol dos times gigantes do continente. Uma posição pela qual o clube cavou, cavou e cavou desde a segunda metade dos anos 70.

Em 1977 o Flamengo iniciava uma nova era com chegada da FAF, Márcio Braga à frente, para a presidência do clube. As contratações de impacto, para colocar o Flamengo no mapa do futebol sulamericano, foram Paulo César Carpegiani, comprado ao Internacional, Cláudio Adão, que veio do Santos e Osni, mini-ponta que veio do Vitória.

No mesmo 1977 a NASA lançou as sondas Voyager 1 e 2 para, inicialmente, estudar Jupiter, Saturno e sua luas. Em 1980, a Voyager 1 já tinha cumprido sua missão inicial e partiu em direção a Urano e Netuno e o Flamengo venceu seu primeiro Campeonato Brasileiro entrando assim, finalmente, no mapa da Libertadores.

As sondas Voyager continuam operando, já percorreram mais de 23 bilhões de quilômetros e estão agora deixando para trás a Heliosfera, nos limites do sistema solar. É longe pra caramba, mas não tão longe quanto aquele Flamengo de 1977 e o Flamengo de 2021. Nesses 44 anos o Flamengo não só entrou no mapa do futebol continente como se tornou dominante nesse campo do conhecimento. Na América o Sul, o Flamengo é o bicho, que atemoriza, paralisa e destrói os adversários. O acidente ocorrido nas oitavas da Libertadores anterior não foi capaz de colocar em questão a consistente hegemonia do Flamengo na região. Estar em mais uma final da Libertadores, dessa vez com um favoritismo inconteste, é a confirmação de que vale a pena acreditar nos grandes projetos e se manter fiel a eles.

A trajetória do Flamengo de 1977 até o Flamengo de hoje não se deu de forma direta e ascensional. Foi cheia de curvas, desvios, recuos e saltos amalucados e até que se conseguisse arrumar a casa, processo que se iniciou há menos de dez anos, o Flamengo correu o enorme risco de não conseguir. As sondas da NASA têm uma enorme vantagem em seu avanço, ninguém está prestando muita atenção na missão importantíssima que eles vêm fazendo. Ninguém precisa ficar pedindo aos torcedores para que deixem a NASA trabalhar.

Já o Flamengo, desde o momento em que abre os olhos até a hora em que volta pro seu berço esplendido, é acompanhando pelos seus torcedores, simpatizante e detratores com mais rigor e obsessão, ainda que com muito menos tecnologia, do que as boas sondas Voyager. Cada mancada, cada torpeço, cada escorregada, reverberou pelo planeta e atrasou um pouco mais a sua chegada ao objetivo.

Mas tudo isso é passado. A missão foi cumprida, o Flamengo chegou lá. O presente mais reluzente do Flamengo é o segundo gol em Guayaquil, em que a bola passou pelos pés dos 11 jogadores em campo, passou pelos 11 Mantos, em uma troca de passes frenética e ao mesmo tempo calma, que só acabou no fundo do barbante. O Flamengo está na final da Libertadores outra vez.

Até 27 de novembro, data da grande final em Montevideo, estima-se que tanto a Voyager 1 quanto a Voyager 2 estejam deixando a região do Heliosheat, a fronteira do sistema solar com o espaço interestelar, prontas para revelar um universo que por enquanto é apenas imaginado. O Flamengo – Senhor da América, por sua vez, deixará para trás o mundo dos sonhos e entrará na realidade.