Arthur Muhlenberg: ‘Esse Flamengo não existe’

'O Flamengo é sempre o mesmo, um dia assim, outro dia assado, às vezes mendigo, às vezes barão, dialético, sempre mulambo', diz o colunista

Foto: Alexandre Vidal/Divulgação Flamengo

Muitas vezes dizemos ou escrevemos que esse Flamengo é bom. Aparentemente um truísmo, uma coisa tão óbvia que não precisava nem ser mencionada. Mas isso na verdade é uma inevidência, aquilo que antigamente chamávamos de mentira. Como assim “esse Flamengo”? Que papo é esse? O Flamengo sempre foi o mesmo, quem muda todos os dias somos nós, nossa percepção, nossa resistência à dor e nossas aspirações.

Mas o Flamengo, não. O Flamengo é sempre o mesmo, um dia assim, outro dia assado, às vezes mendigo, às vezes barão, dialético, sempre mulambo. Não dá pra simplesmente dizer que o Flamengo de agora, ou o Flamengo dos últimos 30 meses que só nos dá alegria, é diferente do Flamengo de sempre. Aquele Flamengo que já fez muito marmanjo chorar de raiva, impotência ou tristeza. Ganhar tudo e realizar os mais loucos delírios de dominação não é o bastante pra modificar, aperfeiçoar ou sofisticar a essência do Flamengo.

E quando dizemos “esse Flamengo”, como se a chegada desse ou daquele jogador, treinador ou presidente fosse um marco temporal a partir do qual tudo se modifica e reordena estamos sendo burros. E tremendamente injustos. O Flamengo que hoje te faz sorrir às quartas e aos domingos, doutrinando no Brasileiro, na Copa do Brasil e na Libertadores, não nasceu com a chegada de Gabigol, ou a contratação de Jesus, ou com a eleição do Landim ou do Bandeira.

Fora a sua lendária gênese náutica em 1895 o Flamengo não teve nascimentos extras e os seus únicos pais biológicos são os seis jovens remadores. Se eles não tivessem se revoltado quando viram os caras de Botafogo tirando onda de barco na praia em frente da Côrrea Dutra talvez Alberto Borghert não ficasse farto das convenções da pequena burguesia em Álvaro Chaves.

Talvez, José Bastos Padilha não enxergasse o óbvio fato de que o então dolicocéfalo e caucasiano rubro-negro precisava dos pretos Domingos, Fausto e Leônidas, talvez Valido preferisse ficar na sua tipografia e Rondinelli não tivesse subido mais alto que Abel para reservar as passagens para Tóquio. Mas os remadores eram terrivelmente localistas e se revoltaram com os folgados de Botafogo arroizando a mulherada do bairro e por isso o Flamengo está aí até hoje.

Dentro de uma perspectiva histórica mais ampla, que considere o potencial do Flamengo para ser eterno, o segundo gol do Gabigol em Lima tem quase a mesma relevância que o gol do Obina contra o Paraná em 2005 ou o pênalti que o Zico perdeu na decisão da Taça Guanabara de 1976. Cada evento da micro história rubro-negra, memorável ou esquecível, seja motivo de orgulho, raiva ou vergonha, foi fundamental para o Flamengo ser o que é.

O Flamengo é o que vem sendo, mas também é tudo aquilo que já foi e o que ainda será. Por isso ele não se modifica, o Flamengo simplesmente é. No hinduísmo, que é um pouco mais antigo que o Flamengo, tem uma parada chamada Trimúrti, que em sânscrito significa três formas. É a manifestação tripla do Brâman, –o Absoluto, a divindade suprema — composta pelos três principais deuses do hinduísmo: Brahma, Vishnu e Shiva.

Como o homem é um ser ridículo e limitado que só usa dez por cento de sua cabeça animal, ele não reconhece o Brâman, só é capaz de perceber seus três aspectos: Brama, o Criador, Vishnu, o Preservador e Shiva, o Destruidor. Os hindus entendem o universo como ciclos que se repetem. Depois que um universo é destruído por Shiva, Vishnu se encontra dormindo e flutuando no oceano primordial. Quando o próximo universo está para ser criado, Brama aparece montado numa flor de lótus brotada do umbigo de Vishnu e recria todo o universo.

O Flamengo, como se trata de uma representação vermelha e preta do universo, e o universo na Índia é o mesmo universo na Gávea, no Monumental de Lima ou em São João de Meriti, também se sujeita aos mesmos ciclos eternos de criação, preservação e destruição. O gol perdido na Rua Bariri em um Carioca dos anos 40 é composto da mesma matéria que a gol do Nunes contra o Liverpool ou a bola que o Leo Pereira tirou em cima da linha evitando o gol do Ceará. O Flamengo é tudo isso.

O Flamengo não muda, é sempre o mesmo. Dependendo do ciclo ele pode provocar em nós alegria, tristeza, medo ou coragem, mas nunca deixa de ser o Flamengo. Quem muda somos nós. Heráclito dizia que ninguém podia entrar duas vezes no mesmo rio, não apenas porque na segunda vez que se entra não se encontram as mesmas águas, mas, principalmente porque no intervalo entre dois mergulhos fomos nós que nos modificamos.

Se o Flamengo de hoje é tudo que sempre sonhamos é porque somos limitados e estamos sonhando errado. O Flamengo pode ser muito mais. Mas pra isso acontecer somos nós que temos que evoluir. Não podemos perder essa chance.