Arthur Muhlenberg: ‘A arte cretina de torcer pra time ruim’

'Como no Flamengo tudo é intenso e vibrante e escandaloso a casa caiu com tudo. Com direito a Maracanazo, esculacho dos paranaenses e eloquentes demonstrações do desamor das massas bem vestidas ao Renato Gaúcho'

Foto: Marcelo Cortes/Flamengo

Que tragédia essa semifinal da Copa do Brasil. Perder semifinal é sempre traumático, mas essa derrota em especial foi mais dolorida porque não contou com o auxílio da surpresa. Todo mundo que tava vendo o Flamengo jogar nas últimas semanas estava cheio de motivos para prever o pior.

O time já vinha em uma decadência técnica, tática, física e moral indisfarçável. Nem a agenda positiva, ancorada no bilionário recorde de faturamento e no fulgor da consagrada Rebeca Andrade no Mundial de Ginástica Artística e do cria Matheus França bagunçando com todo mundo nas categorias de base, conseguiu disfarçar o forte odor da mozarela derretendo na chapa ardente do eixo Gávea – Ninho do Urubu.

As notícias sobre os conflitos organizacionais, o questionamento sobre a competência dos profissionais do futebol, a barbeiragem do Departamento Médico com o joelho do Pedro e a bateção de cabeça pública, com muita gente falando e ninguém resolvendo, eram indícios mais do que suficientes que a casa tava pra cair.

Como no Flamengo tudo é intenso e vibrante e escandaloso a casa caiu com tudo. Com direito a Maracanazo, esculacho dos paranaenses e eloquentes demonstrações do desamor das massas bem vestidas ao Renato Gaúcho. Renight, que acha que não é bobo, em mais uma constrangedora coletiva repleta de bordões ultrapassados, ainda lançou mão de um recurso desesperado: colocou o cargo à disposição da diretoria, que não aceitou a demissão.

Um manjado caô corporativo que simplesmente não existe no dia a dia das corporações. Nelas, quando alguém se demite pega os seus breguetis, passa do departamento pessoal, assina a demissão e dá linha na pipa. E raríssimos são os patrões que não aceitam a demissão. Então o gesto do Renato tinha baixo valor de face, era uma gag, um efeito cômico ou dramático que, numa representação, resulta do que o ator faz ou diz, jogando com o elemento surpresa.

E ele sabia perfeitamente que o Flamengo, com uma final marcada para o fim do mês que vem não o demitiria sem ter alguém pronto pra assumir a tarefa. Jogou pra galera, não admitiu nenhum dos seus vacilos e segue prestigiado. Tão prestigiado que se o Flamengo perder no sábado pro Atlético Mineiro ele vai ser demitido, não pela vontade da diretoria, mas pela pressão popular. Renato tem dois dias pra decidir se quer ter razão ou se quer ser campeão, as duas coisas ao mesmo tempo já sabemos que não vai rolar. O Marcelo Fera que esteja preparado.

Torcedor não é Renato, se o Flamengo perder mais uma no Brasileiro ninguém vai ser demitido da torcida. No futebol, marcado pela impermanência, o torcedor é quem fica, quem segura as pontas e quem apaga a luz, porque no fim de tudo é ele que paga os boletos. O Flamengo pode continuar existindo sem um ou outro torcedor, mas o torcedor sem o Flamengo não existe.

É difícil pra caramba pra quem nas últimas temporadas refinou seu paladar, elevou seus padrões, estabeleceu altos parâmetros de excelência, constatar que aquele Flamengo canônico de 2019, que não tinha defeitos ou fraquezas, hoje é só uma lembrança na memória. Em termos puramente jesuíticos, o Flamengo de 2021 é uma triste ruína, meros escombros daquela construção imponente e intimidadora que colocou todo o futebol brasileiro e sulamericano sob a sua sombra.

A relação do torcedor com o Flamengo é um pacto de sangue, não tem data de validade. É pra vida toda. E a firma não pode parar, o Flamengo continua na briga por dois títulos importantes e o torcedor rubro-negro quer ganhar os dois. Logo, é preciso vasculhar a memória e começar a praticar a arte bastarda na qual nos notabilizamos nos últimos 30 anos: torcer pra time ruim.

Não que esse Flamengo seja ruim, longe disso. Temos craques como nunca tivemos antes nem nos tempos loucos do dinheiro grátis da ISL. O problema é que craques sozinhos não resolvem nada, precisam de algo ou alguém que os uma, que dê a liga aos seus talentos e os faça trabalhar em conjunto por um bem maior. Ora, esse algo ou alguém é torcida e sua empolgação e confiança. Confiança que anda abalada, mal-acostumada aos padrões de excelência do Míster e relutante em aceitar que tantos jogadores fora de série estejam entregando tão pouco.

Nessa altura do campeonato, ou dos campeonatos, talvez não seja uma má ideia direcionar a confiança voltada às individualidades, que são passíveis de maus dias e desconfortos físicos e mentais, e depositá-la no patrimônio imaterial do Flamengo. A fortuna anímica e moral que tem nos garantido o arroz com feijão desde 1895, a saber: raça, amor, paixão e compromisso inegociável com a vitória.

Isso pra falar apenas daquilo que se manifesta no mundo físico, porque no campo espiritual o Flamengo consegue ser ainda mais rico e opulento. Pra começar temos a torcida que joga junto, que muda placares e que carrega o time nas costas. Tem também a mística do Manto Sagrado e a estatística favorável. Sem falar na fé inquebrantável nos poderes de São Judas, Exu e São José Roberto Wright.

Hoje, o ENEA Brasileiro é uma incógnita, tudo vai depender do desempenho dos caras no sábado. Mas a nossa terceira Libertadores está a apenas 90 minutos. Se Renato vai ficar ou não é uma discussão secundária, de menor importância para a realização das nossas aspirações. Com esses jogadores e essa torcida dá pra ser campeão com qualquer um de técnico. Rogério Ceni já o provou. Temos um mês pra reconstrução. Não só do time, que vai ter que buscar forças sabe-se lá onde pra voltar a ser o que era, mas, principalmente, da confiança da torcida. Que é a única usina geradora capaz de motivar nossos mulambos e incentivá-los a fazer o impossível.